1.2.4 A
experimentação animal no ensino
A prática da experimentação animal nas instituições de ensino é tida como
metodologia-padrão de investigação científica e encarada como o único modo de
estudo prático das ciências biomédicas; desta forma, a participação dos
estudantes é compulsória (INR, 2006; TRÉZ, 2009).
Contudo, a maioria dos
estudantes jamais utilizará animais nas suas carreiras futuras, o que contribui
para colocar em dúvida a relevância dos experimentos de dissecação e
vivissecção conduzidos nas suas graduações (TRÉZ, 2009).
Já para os futuros profissionais que utilizarão animais, como
veterinários e biólogos, há muitas universidades em que os testes cruentos de
outrora foram definitivamente abandonados e substituídos por outros recursos
didáticos, o que evidencia que o antigo método está obsoleto e não é mais
necessário (TRÉZ,
2009).
Afinal, estudantes atuais não
pretendem tornar-se profissionais modernos que, paradoxalmente, insistem em
repetir modelos retrógrados de investigação científica de 300 ou 400 anos (INR,
2006).
Ademais, a maioria destas aulas
representa verdadeiros rituais de flagelação, em que, através de experimentos
cruéis e dolorosos, conhecimentos já sabidos são reproduzidos (INR, 2006).
A vivissecção, especificamente, que consiste
basicamente na abertura do corpo de um animal vivo, serve apenas para ilustrar
informações que já são de amplo conhecimento geral (INR, 2006).
Desta forma, em muitos cursos da área da saúde, aulas práticas tornam-se
excessivamente teóricas, posto que as manipulações experimentais limitam-se a
demonstrações do que já está nos livros. Assim, trata-se de um ritual de
confirmação do que já é conhecido, e não de uma vivência do método científico;
sem questionamentos, o aluno recebe verdades prontas do professor (LIMA, 1995).
Um exemplo de experiência inútil reside na clássica aula em que se
demonstra que a remoção da maior parte do sangue de um animal leva à morte por
choque hipovolêmico; qualquer leigo saberia o resultado de tal experiência, de
maneira que a morte do animal em questão é desnecessária e até mesmo criminosa
(INR, 2006).
Um outro exemplo de experiência de igual
inutilidade e crueldade consiste na famigerada administração de estricnina a
animais como ratos e cães; há séculos é sabido que a estricnina é veneno; no
entanto, nas universidades, aulas vivisseccionistas insistem em utilizá-la para
produzir o macabro espetáculo de contorções e convulsões, como se os estudantes
já não soubessem o efeito de antemão (INR, 2006).
Muitos estudantes optam por não ingressar em um curso de ciências
biológicas justamente para não praticar a vivissecção; outros, já matriculados,
veem-se forçados a trocar de curso, de área ou de universidade porque os
programas curriculares não oferecem a opção por recursos educativos
substitutivos válidos (TRÉZ, 2009).
Por comodidade e receio, entretanto, diversos estudantes subjugam o seu
senso crítico e a sua ética, perdendo a oportunidade de aprimorar o seu respeito
pela vida e permitindo a perpetuação da experimentação animal no ambiente
acadêmico enquanto método exclusivo de aula prática (TRÉZ, 2009).
Outrossim, os estudantes
costumam passar por um processo de dessensibilização ao longo do seu curso; no
início, eles costumam sentir-se mal ao cortar um animal ainda vivo e
simplesmente desprezá-lo no lixo ao final do experimento (ANEXO F - FIGURA 6);
todavia, com a repetição do procedimento, ao final da sua graduação eles já
estão vendo o processo como algo absolutamente natural e corriqueiro (INR,
2006).
Aliás, este processo de
dessensibilização estudantil é definido por Alice Heim como uma “diminuição da
sensibilidade devido à familiaridade”, sendo que por familiaridade entende-se a
repetição constante do processo (ao longo de uma graduação, inúmeras aulas de
vivissecção são possíveis) (GREIF, 2003).
Um estudante
insensível torna-se um indivíduo indiferente ao sofrimento animal,
dessensibilizando-se tanto no que alude ao senso de respeito à vida que poderá,
inclusive, vir a prejudicar animais em outras ocasiões (GREIF, 2003).
Estudos
com crianças que praticam a dissecação em sala de aula mostram que a progressão
desta dessensibilização aparece à medida que animais utilizados nestas aulas
são encontrados mutilados e tais crianças tornam-se mais agressivas (GREIF, 2003).
O biólogo George Russell afirma
ainda que um indivíduo capaz de infligir sofrimento em seres indefesos pode
perfeitamente fazer o mesmo com seres humanos (TRÉZ, 2009).
Ademais,
Robert K. Ressler, norteamericano responsável por traçar perfis psicológicos de
assassinos em série para o FBI (Federal Bureau Investigation), chegou a afirmar
que: “Assassinos [...] muito frequentemente começam matando e torturando
animais quando crianças” (GREIF, 2003).
Portanto, quando a experimentação
animal é utilizada como recurso didático, existe um conjunto de conteúdos
ocultos que é transmitido e que não está explicitado no currículo oficial (INR,
2006).
Ao cortar um animal vivo para
estudar anatomia e depois jogá-lo fora (ANEXO F - FIGURA 6), o estudante
aprende muito mais do que anatomia; aprende a inferiorizar os animais, posto
que são objetos que podem usados e depois desprezados (INR, 2006).
Segundo as palavras da veterinária alemã Dra. Corina Gericke, “os estudantes
tornam-se insensíveis e duros quando usam animais para o seu estudo. Estudantes
de medicina e doutores deveriam ter respeito pela vida, incluindo a vida de
animais” (TRÉZ, 2009).
No entanto, a experimentação
animal no ensino prega justamente o cultivo da morte, fazendo com que se
caminhe na contramão do que se pode esperar de um profissional da saúde, cuja
função é lutar para manter ou resgatar a vida (INR, 2006).
Trata-se de uma situação
paradoxal, em que estudantes em formação para cuidar de pessoas ou animais
doentes estão matando animais sadios. Segundo o sociólogo Arnold Arluke, “eles
são treinados para reduzir ou eliminar o sofrimento, promover a saúde e cuidar
dos doentes compassivamente, mas, são exigidos a realizar ações que questionam
estes objetivos e desafiam as suas identidades profissionais emergentes” (TRÉZ, 2009).
Os vivissectores defendem amplamente o mesmo paradoxo, alegando que é
preciso “matar para salvar” e “desrespeitar para respeitar”, como se uma ação
justificasse a outra e somente assim fosse possível adquirir o conhecimento
necessário para preservar a vida (GREIF, 2003).
Professores e cientistas
concordam ainda que qualquer empatia para com os animais deva ser
desconsiderada; os animais utilizados costumam ser espécimes saudáveis,
oriundos de biotérios (que são instituições que criam animais para esta cruenta
finalidade) ou, em alguns casos, de centros de controle de zoonoses; porém, em
nome da ciência, eles passam a ser chamados de “peças” e a ser vistos como
meros objetos de estudo, e não como seres vivos sencientes, ou seja, capazes de
sofrer (INR, 2006).
Provavelmente as instituições de ensino já estejam de
tal maneira convencidas da recomendação, atribuída a Claude Bernard, de que o
cientista, para agir profissionalmente, deva ser frio em relação ao trato com
os animais, que conceitos como “compaixão” e “piedade” simplesmente escapam do
contexto; afinal (INR, 2006):
“Compaixão é mais difícil de ensinar do que
anatomia.”
Neal Barnard
Médico Psiquiatra
Quando muitos estudantes expressam
algum conflito ético relacionado com as práticas de experimentação animal, são
prontamente encorajados pelos professores a reprimi-lo, posto que preocupações
desta natureza são logo classificadas na esfera das questões pessoais; desta
forma, eles acabam convencidos de que os seus temores morais devem ser contidos
para favorecimento do seu aprendizado “real”, enquanto a sua forma de ver os
animais acaba sofrendo profundas transformações ao longo da graduação (TRÉZ, 2009).
Depoimentos de estudantes de medicina denotam o quão a forma de ver os
animais durante procedimentos cirúrgicos torna-se superficial; por exemplo,
muitas vezes o efeito de um anestésico vai passando com o tempo, devendo haver
nova aplicação quando o animal começar a recobrar a consciência; um estudante
chega a classificar como “tragicômica”
a cena em que presenciou um animal levantando-se no meio do experimento, com o
seu abdome aberto (TRÉZ, 2009).
Em pouco tempo, portanto, os estudantes substituem o desconforto
vivenciado junto ao sofrimento dos animais pela excitação de atuar em um
ambiente laboratorial; logicamente, a oportunidade de estar entre equipamentos
cirúrgicos é deveras empolgante para os estudantes, acostumados à monotonia das
leituras nas salas de aula. Não obstante, a mesma oportunidade é concedida aos
estudantes quando estes começam simplesmente observando procedimentos
necessários em salas de operações humanas (TRÉZ,
2009).
Mormente, a primeira experiência clínica de um estudante deveria sempre
valorizar a vida. Deste modo, universidades médicas de ponta expõem o estudante
em clínicas e salas de operação no seu treinamento, eliminando a utilização de
animais de laboratório (TRÉZ, 2009).
A despeito da posição pró-viviosseccionista da maioria dos médicos,
provavelmente influenciada pela sua formação acadêmica, há profissionais
renomados que mantêm o respeito incondicional à vida, sob todas as suas formas,
como o fundador de uma das mais conceituadas clínicas norteamericanas (INR,
2006):
Eu não conheço nenhuma realização conseguida
pela vivissecção,
nenhuma descoberta científica que não
poderia ter sido obtida sem
tal barbarismo e
crueldade. A coisa é toda má.
Dr. Charles Mayo
Fundador da Clínica Mayo
Logo, o respeito à vida costuma ser perdido
durante o período acadêmico, ocasião em que o estudante encerra-se na sua linha
de pesquisa e aliena-se de tudo o que ocorre à sua volta. Desta forma, torna-se
difícil para ele cumprir a lei ao tornar-se profissional, pois a experimentação
com animais é permitida apenas na ausência de métodos substitutivos, os quais
ele desconhece; portanto, cabe ao estudante buscar conhecer os métodos
disponíveis, uma vez que dificilmente tais informações são divulgadas nas
universidades (INR, 2006).
A falta de discussão sobre a ética da experimentação animal e os recursos
substitutivos existentes no ensino e na transmissão do conhecimento científico
gera, no final e paradoxalmente, a lição ética de que a preocupação ética não
importa. O currículo oculto bagateliza a vida ao ensinar que os animais podem
ser considerados como instrumentos descartáveis. E quando a ciência vê-se
inserida em um vácuo moral e ético, as consequências, de grande seriedade,
abrangem também toda a sociedade (TRÉZ,
2009).
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