1. ASPECTOS HISTÓRICOS E ÉTICOS DA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL
1.1 Retrospectiva histórica
Após o período paleolítico, a
espécie humana acabou impondo-se sobre as demais por utilizar a sua capacidade
singular de reflexão (LEVAI, 2004).
Todavia, os filósofos
gregos naturalistas manifestavam apoio a princípios orientadores como a origem
animal do homem e a evolução das espécies (LEVAI, 2004).
Esta corrente de
pensamento, no entanto, seria interrompida e retornaria à luz da consideração
humana apenas em 1859, quando Charles Darwin publicou a “Origem das Espécies”,
obra que estreou a ideia evolucionista e retomou o antigo conceito filosófico
naturalista grego de que homens e animais integram a mesma escala evolutiva e
são todos seres sencientes (LEVAI, 2004).
Entretanto, da quebra
dos paradigmas filosóficos naturalistas gregos até o renascimento da doutrina
evolucionista, o antropocentrismo vigorou, absoluto; a partir dos sofistas, os
gregos tornaram-se estritamente antropocêntricos, passando então a proclamar a
superioridade da espécie humana sobre todas as demais, inclusive apoiando a
matança e a subjugação das espécies mais fracas (LEVAI, 2004).
Os grandes filósofos
gregos clássicos desprezavam o real valor dos animais; Sócrates (469-399 a.C.) não via como
relevante o estudo dos fenômenos da natureza; Platão (427-347 a.C.) subordinava as leis
naturais aos desígnios divinos, e Aristóteles (384-322 a.C.) afirmava que a
única utilidade dos animais era servir ao ser humano (LEVAI, 2004).
As exceções ficavam por
conta de Pitágoras (565-497 a.C.),
que via como um dever humano a amabilidade para com todos os outros animais
(GOLDIM e RAYMUNDO, 1997), Plutarco (45-125) e Porfírio (233-304); estes nomes
representaram uma atitude piedosa perante os animais e até a adoção de uma
alimentação vegetariana (LEVAI, 2004).
A utilização de animais na ciência teve o seu início justamente neste
cenário grego antigo, época em que o homem sentiu a necessidade de compreender
a mecânica básica do corpo humano, e teria começado com Hipócrates (550 a.C.), considerado hoje
como o “pai da medicina”, que já relacionava o aspecto de órgãos humanos
doentes com os de animais, e realizava dissecações com finalidade didática
(GOLDIM e RAYMUNDO, 1997; LEVAI, 2004).
Os
anatomistas Alcmaeon (550 a.C.),
Erasistratus (350-240 a.C.)
e Herophilus (300-250 a.C.)
realizavam vivissecções de animais com a finalidade de observar estruturas e
formular hipóteses sobre aspectos fisiológicos (GOLDIM e RAYMUNDO, 1997; LEVAI, 2004).
Não obstante, provavelmente tenha
sido Galeno (130-200), em Roma, o pioneiro em vivissecções de animais com
objetivos experimentais, ou seja, para provocar alterações e testar variáveis
(GOLDIM e RAYMUNDO, 1997; LEVAI, 2001).
Na Idade Média, os valores antropocêntricos
culminaram, atingindo até mesmo homens que posteriormente viriam a ser declarados
santos; Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de Aquino (1225-1272)
consideravam o homem hierarquicamente superior aos animais, podendo dispor das
suas vidas conforme a sua vontade (LEVAI, 2004).
A
exceção ficava por conta de Francesco Bernardone (1182-1226), ou São Francisco
de Assis, o qual protegia os animais e até se dispunha a falar com eles, cuja acolhedora simpatia para com todos os seres vivos
foi precursora do considerável respeito de Rousseau por toda a natureza,
séculos depois (JAHR, 1927; LEVAI, 2004).
Nos
tempos medievais, a primeira pesquisa científica que utilizou
animais de forma sistemática provavelmente tenha sido a de William Harvey,
publicada em 1638, sob o título "Exercitatio anatomica de motu cordis et
sanguinis in animalibus", em que o autor apresenta os resultados obtidos
em estudos experimentais sobre a fisiologia da circulação realizados em mais de
80 espécies animais diferentes (GOLDIM e RAYMUNDO, 1997).
O filósofo René
Descartes (1596-1650) defendia a utilização experimental dos animais, inclusive
a vivissecção, baseado na sua teoria do “animal-máquina”, a qual via os animais
como meros autômatos, destituídos de alma e sentimentos (GOLDIM e RAYMUNDO,
1997; LEVAI, 2004).
Para ele, sentimentos como dor e
sofrimento residiam na alma, que só os homens possuíam; portanto, se animais
não tinham alma, a dedução lógica era a de que não sentiam dor. Os ganidos de
cães seccionados vivos e conscientes, na Escola de Port-Royal, por ele e os
seus seguidores, eram interpretados como o simples ranger de uma máquina (DARÓ
e LEVAI, 2008).
Dentre os motivos para a escolha dos
animais, estavam o da perpetuação de modelos já consagrados, a concepção de que
a vida animal não teria qualquer valor (igualmente não era atribuído valor à
vida de seres humanos escravos, porém, estes custavam mais do que animais de
criação) e o fato de cadáveres humanos serem de difícil obtenção,
principalmente devido à proibição por parte da Igreja Católica de dissecar
corpos humanos (GREIF e TRÉZ, 2000).
A
desconsideração ao valor e à dignidade do animal atingiu o seu ápice durante a
era das grandes navegações; aves, onças, leões, tigres, macacos, elefantes,
ursos e outros animais eram aprisionados e transportados, das Américas ou da
África, para os principais reinos europeus; devido às precárias condições
vividas durante a penosa travessia pelo oceano, muitos morriam, enquanto os
sobreviventes encontravam não melhor destino nas jaulas de colecionadores
excêntricos ou nas companhias mambembes (FERRONHA, 1993; LEVAI, 2004).
Nas ruas de Lisboa,
frequentemente a Corte apresentava ao povo, em desfile aberto, homens africanos
e animais selvagens subjugados (FERRONHA, 1993; LEVAI, 2004).
Dom
Manuel, tido como o Venturoso, durante os seus habituais passeios do Paço da Ribeira
até o Rossio, gostava de ser seguido por um inusitado cortejo zoológico,
repleto de paquidermes acorrentados, felinos enjaulados, símios barulhentos e
pássaros aprisionados, trazidos de terras longínquas (FERRONHA, 1993; LEVAI,
2004).
Porém, também nos
territórios conquistados vigorava a concepção de que os animais não tinham
valor e deveriam viver única e exclusivamente para a servidão aos seres humanos
(LEVAI, 2004).
Teria sido no século
XVI, início do período colonial, que os primeiros animais domésticos
desembarcaram no Brasil; certamente, a história da colonização brasileira deve
muito a estes animais; bois para arado dos canaviais e movimento da roda dos
engenhos, vacas para fornecimento de leite e carne, mulas, jumentos e burros
para transporte de carga e tração, cavalos para viagens e combates, cães para
vigilância e caça e aves e porcos para a alimentação (LEVAI, 2004).
Na
perspectiva do colonizador, se os animais fossem vistos como empecilhos, a sua
destruição seria certa; em 1791, por exemplo, o Governador da Capitania de Goiás obteve Carta
Régia ordenando o extermínio incondicional dos muares, animais tão dóceis como
os burros, as mulas e os jumentos, com a única finalidade de favorecer
criadores e negociantes de cavalos (LEVAI, 2004).
Logo,
se a subjugação de animais era vista com tamanha naturalidade, tanto nos reinos
europeus quanto nas suas colônias, e obedecia a conveniências humanas como
estilo de vida e negócios, não chega a causar estranhamento o fato da
experimentação animal, especialmente a vivissecção, encontrar defensores e
seguidores ardorosos, como Claude Bernard.
Em meados do século
XIX, Claude Bernard (1813-1878), fisiologista francês, lançou as bases da
moderna experimentação animal com a sua obra “Introdução à medicina experimental”,
publicada em 1865 e considerada por muitos como a “bíblia dos vivissectores”
(DARÓ e LEVAI, 2004).
Ademais, justamente em
1865 ele expressou a sua opinião a respeito do tema do seguinte modo (GOLDIM
e RAYMUNDO, 1997):
Nós temos o direito
de fazer experimentos animais e vivissecção? Eu penso que temos este direito,
total e absolutamente. Seria estranho se reconhecêssemos o direito de usar os
animais para serviços caseiros e alimentação, mas proibir o seu uso para o
ensino de uma das ciências mais úteis para a humanidade. Experimentos devem ser
feitos tanto no homem quanto nos animais. Penso que os médicos já fazem muitos
experimentos perigosos no homem, antes de estudá-los cuidadosamente nos
animais. Eu não admito que seja moralmente aceitável testar remédios mais ou
menos perigosos ou ativos em pacientes hospitalizados, sem primeiro
experimentá-los em cães. Eu
provarei, a seguir, que os resultados obtidos em animais podem ser todos
conclusivos para o homem, quando nós sabemos como experimentar
adequadamente.
Claude Bernard promoveu
a vivissecção como “método analítico de investigação do ser vivo” por meio da
utilização de instrumentos e processos físico-químicos capazes de “isolar
determinadas partes do animal” (DARÓ e LEVAI, 2004).
Ademais, Claude Bernard afirmava que a postura do
cientista exigia a indiferença ao sofrimento dos animais de laboratório.
Ironicamente, entretanto, um relevante episódio para o estabelecimento de limites à
utilização de animais em experimentação e ensino foi justamente o que envolveu
a esposa e a filha de Claude Bernard. O supracitado fisiologista utilizou, por
volta de 1860, o cachorro de estimação da sua filha para dar aula aos seus
alunos. Em resposta a este ato e movida pelo que presenciava nos porões da sua
própria casa, a sua esposa fundou a primeira associação para a defesa dos
animais de laboratório (GOLDIM
e RAYMUNDO, 1997; LEVAI, 2001).
Em
oposição à cruenta doutrina de Claude Bernard, a corrente antivivisseccionista
começou a adquirir força, e posteriormente nomes como Voltaire, Mahatma Gandhi,
Mark Twain, Victor Hugo e Leon Tolstói representaram vozes contra o massacre de
animais na medicina (LEVAI, 2004).
O médico missionário
Albert Schweitzer (1875-1965) afirmava que o homem só é verdadeiramente ético
quando demonstra solidariedade incondicional perante todos os seres viventes
(LEVAI, 2004).
Voltando a enfocar o
Brasil, percebe-se que a referida solidariedade incondicional aos animais
tardou a despontar; como exemplo de uso abusivo de animais, cumpre destacar que
duas décadas antes da Proclamação da República, os bondes do Rio de Janeiro e
de São Paulo eram puxados por burros, cujo martírio prolongou-se até o início
do século XX (LEVAI, 2004).
O abolicionista José do
Patrocínio (1854-1905), chocado após presenciar uma cena que vira na cidade do
Rio de Janeiro, resolveu então demonstrar toda a sua indignação descrevendo-a
na sua coluna no jornal “A Notícia”:
Eu tenho pelos
animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma. Ainda que rudimentar, e
que eles sofrem conscientemente as revoltas contra a injustiça humana. Já vi um
burro suspirar como um justo depois de brutalmente esbordoado por um carroceiro
que atestara o carro com carga para uma quadriga e queria que o mísero animal o
arrancasse do atoleiro.
Contudo, sentindo-se mal em meio a este texto, José
do Patrocínio veio a falecer (LEVAI, 2004).
O poeta Olavo Bilac, na
Academia Brasileira de Letras, homenageou com palavras admiráveis a memória de
José do Patrocínio (ORICO, 1977):
O espírito do
Redentor, ao despedir-se da existência, desenvolvia e apurava a sua capacidade
de amar. Já não era somente o amor de uma raça infeliz, que lhe enchia o
coração, nem o amor somente de todos os homens: era o amor da Vida, amor de
tudo quanto vibra e sente, de tudo quanto rasteja e voa, de tudo quanto nasce e
morre: ‘Eu tenho pelos animais um respeito egípcio; creio que eles têm uma
alma!’...
Desta forma, o mesmo homem
que fez da busca pela liberdade a sua razão de viver fez um apelo derradeiro em
nome dos animais no momento de morrer. Ainda seria preciso, entretanto, que as
pessoas despertassem para esta causa. O século que se iniciava, oportunamente,
traria muitos nomes dispostos a lutar pelos direitos dos animais.
Já no século XX, o
líder pacifista Mahatma Gandhi, influenciado pelo princípio básico do jainismo
(a mais compassiva das religiões hindus) de “não causar mal a qualquer ser
vivente”, alertava que os animais são vítimas da tirania humana por ser
indefesos e não ter forças para a ela resistir (LEVAI, 2004).
Entretanto, foi
justamente no século XX que a
prática da vivissecção alcançou índices alarmantes, com um terço dos animais
nela utilizados destinando-se à investigação médica e os dois terços restantes
reservando-se para as pesquisas feitas para as indústrias de alimentação,
cosméticos, produtos de limpeza, tabaco e indústria bélica (LEVAI, 2001).
Henry
Spira, em 1980, denunciou a Indústria de Cosméticos Revlon pelo uso de coelhos
para fins de testes de toxicidade de cosméticos. Após ter tentado, sem êxito,
convencer a empresa a realizar pesquisas sobre métodos substitutivos de
investigação de toxicidade, publicou, em 15 de abril de 1980, um anúncio de
página inteira no jornal New York Times, com a seguinte frase: "How many rabbits
does Revlon blind for beauty's sake?" (Quantos coelhos a Revlon cega em
nome da beleza?). Em 1989, tanto a Avon quanto a Revlon aderiram ao movimento
(SINGER, 1990).
Porém,
a Avon e a Revlon foram exceções; a maioria das indústrias de cosméticos
insiste em testar os seus produtos em animais vivos (ANEXO E). O
escritor sul-africano J. M. Coetzee conquistou o prêmio Nobel de Literatura de
2003 com o livro “A vida dos animais”, em que a sua narrativa, apesar de
permeada de poesia e sentimento, denuncia os horrores cotidianos a que os
animais são submetidos, inclusive nas indústrias de produtos de beleza,
desnudando a atual realidade dos bastidores do ensino, da ciência e da
indústria em geral e mostrando a necessidade de uma modificação de postura e
conduta, sobretudo no que diz respeito aos direitos dos animais (LEVAI, 2004).