quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

1. ASPECTOS HISTÓRICOS E ÉTICOS DA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL 1.1 RETROSPECTIVA HISTÓRICA


                       1. ASPECTOS HISTÓRICOS E ÉTICOS DA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL
1.1 Retrospectiva histórica
Após o período paleolítico, a espécie humana acabou impondo-se sobre as demais por utilizar a sua capacidade singular de reflexão (LEVAI, 2004).
            Todavia, os filósofos gregos naturalistas manifestavam apoio a princípios orientadores como a origem animal do homem e a evolução das espécies (LEVAI, 2004).
            Esta corrente de pensamento, no entanto, seria interrompida e retornaria à luz da consideração humana apenas em 1859, quando Charles Darwin publicou a “Origem das Espécies”, obra que estreou a ideia evolucionista e retomou o antigo conceito filosófico naturalista grego de que homens e animais integram a mesma escala evolutiva e são todos seres sencientes (LEVAI, 2004).
            Entretanto, da quebra dos paradigmas filosóficos naturalistas gregos até o renascimento da doutrina evolucionista, o antropocentrismo vigorou, absoluto; a partir dos sofistas, os gregos tornaram-se estritamente antropocêntricos, passando então a proclamar a superioridade da espécie humana sobre todas as demais, inclusive apoiando a matança e a subjugação das espécies mais fracas (LEVAI, 2004).

            Os grandes filósofos gregos clássicos desprezavam o real valor dos animais; Sócrates (469-399 a.C.) não via como relevante o estudo dos fenômenos da natureza; Platão (427-347 a.C.) subordinava as leis naturais aos desígnios divinos, e Aristóteles (384-322 a.C.) afirmava que a única utilidade dos animais era servir ao ser humano (LEVAI, 2004).
            As exceções ficavam por conta de Pitágoras (565-497 a.C.), que via como um dever humano a amabilidade para com todos os outros animais (GOLDIM e RAYMUNDO, 1997), Plutarco (45-125) e Porfírio (233-304); estes nomes representaram uma atitude piedosa perante os animais e até a adoção de uma alimentação vegetariana (LEVAI, 2004).
A utilização de animais na ciência teve o seu início justamente neste cenário grego antigo, época em que o homem sentiu a necessidade de compreender a mecânica básica do corpo humano, e teria começado com Hipócrates (550 a.C.), considerado hoje como o “pai da medicina”, que já relacionava o aspecto de órgãos humanos doentes com os de animais, e realizava dissecações com finalidade didática (GOLDIM e RAYMUNDO, 1997; LEVAI, 2004).
Os anatomistas Alcmaeon (550 a.C.), Erasistratus (350-240 a.C.) e Herophilus (300-250 a.C.) realizavam vivissecções de animais com a finalidade de observar estruturas e formular hipóteses sobre aspectos fisiológicos (GOLDIM e RAYMUNDO, 1997; LEVAI, 2004).
            Não obstante, provavelmente tenha sido Galeno (130-200), em Roma, o pioneiro em vivissecções de animais com objetivos experimentais, ou seja, para provocar alterações e testar variáveis (GOLDIM e RAYMUNDO, 1997; LEVAI, 2001).
Na Idade Média, os valores antropocêntricos culminaram, atingindo até mesmo homens que posteriormente viriam a ser declarados santos; Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de Aquino (1225-1272) consideravam o homem hierarquicamente superior aos animais, podendo dispor das suas vidas conforme a sua vontade (LEVAI, 2004).
            A exceção ficava por conta de Francesco Bernardone (1182-1226), ou São Francisco de Assis, o qual protegia os animais e até se dispunha a falar com eles, cuja acolhedora simpatia para com todos os seres vivos foi precursora do considerável respeito de Rousseau por toda a natureza, séculos depois (JAHR, 1927; LEVAI, 2004).
            Nos tempos medievais, a primeira pesquisa científica que utilizou animais de forma sistemática provavelmente tenha sido a de William Harvey, publicada em 1638, sob o título "Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus", em que o autor apresenta os resultados obtidos em estudos experimentais sobre a fisiologia da circulação realizados em mais de 80 espécies animais diferentes (GOLDIM e RAYMUNDO, 1997).
            O filósofo René Descartes (1596-1650) defendia a utilização experimental dos animais, inclusive a vivissecção, baseado na sua teoria do “animal-máquina”, a qual via os animais como meros autômatos, destituídos de alma e sentimentos (GOLDIM e RAYMUNDO, 1997; LEVAI, 2004).
            Para ele, sentimentos como dor e sofrimento residiam na alma, que só os homens possuíam; portanto, se animais não tinham alma, a dedução lógica era a de que não sentiam dor. Os ganidos de cães seccionados vivos e conscientes, na Escola de Port-Royal, por ele e os seus seguidores, eram interpretados como o simples ranger de uma máquina (DARÓ e LEVAI, 2008).
            Dentre os motivos para a escolha dos animais, estavam o da perpetuação de modelos já consagrados, a concepção de que a vida animal não teria qualquer valor (igualmente não era atribuído valor à vida de seres humanos escravos, porém, estes custavam mais do que animais de criação) e o fato de cadáveres humanos serem de difícil obtenção, principalmente devido à proibição por parte da Igreja Católica de dissecar corpos humanos (GREIF e TRÉZ, 2000).
            A desconsideração ao valor e à dignidade do animal atingiu o seu ápice durante a era das grandes navegações; aves, onças, leões, tigres, macacos, elefantes, ursos e outros animais eram aprisionados e transportados, das Américas ou da África, para os principais reinos europeus; devido às precárias condições vividas durante a penosa travessia pelo oceano, muitos morriam, enquanto os sobreviventes encontravam não melhor destino nas jaulas de colecionadores excêntricos ou nas companhias mambembes (FERRONHA, 1993; LEVAI, 2004).
            Nas ruas de Lisboa, frequentemente a Corte apresentava ao povo, em desfile aberto, homens africanos e animais selvagens subjugados (FERRONHA, 1993; LEVAI, 2004).
            Dom Manuel, tido como o Venturoso, durante os seus habituais passeios do Paço da Ribeira até o Rossio, gostava de ser seguido por um inusitado cortejo zoológico, repleto de paquidermes acorrentados, felinos enjaulados, símios barulhentos e pássaros aprisionados, trazidos de terras longínquas (FERRONHA, 1993; LEVAI, 2004).
            Porém, também nos territórios conquistados vigorava a concepção de que os animais não tinham valor e deveriam viver única e exclusivamente para a servidão aos seres humanos (LEVAI, 2004).
            Teria sido no século XVI, início do período colonial, que os primeiros animais domésticos desembarcaram no Brasil; certamente, a história da colonização brasileira deve muito a estes animais; bois para arado dos canaviais e movimento da roda dos engenhos, vacas para fornecimento de leite e carne, mulas, jumentos e burros para transporte de carga e tração, cavalos para viagens e combates, cães para vigilância e caça e aves e porcos para a alimentação (LEVAI, 2004).
            Na perspectiva do colonizador, se os animais fossem vistos como empecilhos, a sua destruição seria certa; em 1791, por exemplo, o Governador da Capitania de Goiás obteve Carta Régia ordenando o extermínio incondicional dos muares, animais tão dóceis como os burros, as mulas e os jumentos, com a única finalidade de favorecer criadores e negociantes de cavalos (LEVAI, 2004).
            Logo, se a subjugação de animais era vista com tamanha naturalidade, tanto nos reinos europeus quanto nas suas colônias, e obedecia a conveniências humanas como estilo de vida e negócios, não chega a causar estranhamento o fato da experimentação animal, especialmente a vivissecção, encontrar defensores e seguidores ardorosos, como Claude Bernard.
            Em meados do século XIX, Claude Bernard (1813-1878), fisiologista francês, lançou as bases da moderna experimentação animal com a sua obra “Introdução à medicina experimental”, publicada em 1865 e considerada por muitos como a “bíblia dos vivissectores” (DARÓ e LEVAI, 2004).
Ademais, justamente em 1865 ele expressou a sua opinião a respeito do tema do seguinte modo (GOLDIM e RAYMUNDO, 1997):
Nós temos o direito de fazer experimentos animais e vivissecção? Eu penso que temos este direito, total e absolutamente. Seria estranho se reconhecêssemos o direito de usar os animais para serviços caseiros e alimentação, mas proibir o seu uso para o ensino de uma das ciências mais úteis para a humanidade. Experimentos devem ser feitos tanto no homem quanto nos animais. Penso que os médicos já fazem muitos experimentos perigosos no homem, antes de estudá-los cuidadosamente nos animais. Eu não admito que seja moralmente aceitável testar remédios mais ou menos perigosos ou ativos em pacientes hospitalizados, sem primeiro experimentá-los em cães. Eu provarei, a seguir, que os resultados obtidos em animais podem ser todos conclusivos para o homem, quando nós sabemos como experimentar adequadamente. 
            Claude Bernard promoveu a vivissecção como “método analítico de investigação do ser vivo” por meio da utilização de instrumentos e processos físico-químicos capazes de “isolar determinadas partes do animal” (DARÓ e LEVAI, 2004).
            Ademais, Claude Bernard afirmava que a postura do cientista exigia a indiferença ao sofrimento dos animais de laboratório. Ironicamente, entretanto, um relevante episódio para o estabelecimento de limites à utilização de animais em experimentação e ensino foi justamente o que envolveu a esposa e a filha de Claude Bernard. O supracitado fisiologista utilizou, por volta de 1860, o cachorro de estimação da sua filha para dar aula aos seus alunos. Em resposta a este ato e movida pelo que presenciava nos porões da sua própria casa, a sua esposa fundou a primeira associação para a defesa dos animais de laboratório (GOLDIM e RAYMUNDO, 1997; LEVAI, 2001).
            Em oposição à cruenta doutrina de Claude Bernard, a corrente antivivisseccionista começou a adquirir força, e posteriormente nomes como Voltaire, Mahatma Gandhi, Mark Twain, Victor Hugo e Leon Tolstói representaram vozes contra o massacre de animais na medicina (LEVAI, 2004).
            O médico missionário Albert Schweitzer (1875-1965) afirmava que o homem só é verdadeiramente ético quando demonstra solidariedade incondicional perante todos os seres viventes (LEVAI, 2004).
            Voltando a enfocar o Brasil, percebe-se que a referida solidariedade incondicional aos animais tardou a despontar; como exemplo de uso abusivo de animais, cumpre destacar que duas décadas antes da Proclamação da República, os bondes do Rio de Janeiro e de São Paulo eram puxados por burros, cujo martírio prolongou-se até o início do século XX (LEVAI, 2004).
            O abolicionista José do Patrocínio (1854-1905), chocado após presenciar uma cena que vira na cidade do Rio de Janeiro, resolveu então demonstrar toda a sua indignação descrevendo-a na sua coluna no jornal “A Notícia”:
Eu tenho pelos animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma. Ainda que rudimentar, e que eles sofrem conscientemente as revoltas contra a injustiça humana. Já vi um burro suspirar como um justo depois de brutalmente esbordoado por um carroceiro que atestara o carro com carga para uma quadriga e queria que o mísero animal o arrancasse do atoleiro.

              
Contudo, sentindo-se mal em meio a este texto, José do Patrocínio veio a falecer (LEVAI, 2004).
            O poeta Olavo Bilac, na Academia Brasileira de Letras, homenageou com palavras admiráveis a memória de José do Patrocínio (ORICO, 1977):
O espírito do Redentor, ao despedir-se da existência, desenvolvia e apurava a sua capacidade de amar. Já não era somente o amor de uma raça infeliz, que lhe enchia o coração, nem o amor somente de todos os homens: era o amor da Vida, amor de tudo quanto vibra e sente, de tudo quanto rasteja e voa, de tudo quanto nasce e morre: ‘Eu tenho pelos animais um respeito egípcio; creio que eles têm uma alma!’...
                              
                Desta forma, o mesmo homem que fez da busca pela liberdade a sua razão de viver fez um apelo derradeiro em nome dos animais no momento de morrer. Ainda seria preciso, entretanto, que as pessoas despertassem para esta causa. O século que se iniciava, oportunamente, traria muitos nomes dispostos a lutar pelos direitos dos animais.
            Já no século XX, o líder pacifista Mahatma Gandhi, influenciado pelo princípio básico do jainismo (a mais compassiva das religiões hindus) de “não causar mal a qualquer ser vivente”, alertava que os animais são vítimas da tirania humana por ser indefesos e não ter forças para a ela resistir (LEVAI, 2004).
            Entretanto, foi justamente no século XX que a prática da vivissecção alcançou índices alarmantes, com um terço dos animais nela utilizados destinando-se à investigação médica e os dois terços restantes reservando-se para as pesquisas feitas para as indústrias de alimentação, cosméticos, produtos de limpeza, tabaco e indústria bélica (LEVAI, 2001).
            Henry Spira, em 1980, denunciou a Indústria de Cosméticos Revlon pelo uso de coelhos para fins de testes de toxicidade de cosméticos. Após ter tentado, sem êxito, convencer a empresa a realizar pesquisas sobre métodos substitutivos de investigação de toxicidade, publicou, em 15 de abril de 1980, um anúncio de página inteira no jornal New York Times, com a seguinte frase: "How many rabbits does Revlon blind for beauty's sake?" (Quantos coelhos a Revlon cega em nome da beleza?). Em 1989, tanto a Avon quanto a Revlon aderiram ao movimento (SINGER, 1990).
            Porém, a Avon e a Revlon foram exceções; a maioria das indústrias de cosméticos insiste em testar os seus produtos em animais vivos (ANEXO E). O escritor sul-africano J. M. Coetzee conquistou o prêmio Nobel de Literatura de 2003 com o livro “A vida dos animais”, em que a sua narrativa, apesar de permeada de poesia e sentimento, denuncia os horrores cotidianos a que os animais são submetidos, inclusive nas indústrias de produtos de beleza, desnudando a atual realidade dos bastidores do ensino, da ciência e da indústria em geral e mostrando a necessidade de uma modificação de postura e conduta, sobretudo no que diz respeito aos direitos dos animais (LEVAI, 2004).

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